Pandemia travou e virtualizou Orçamentos Participativos no mundo
Atlas Mundial indica que mais de metade dos orçamentos participativos foram suspensos durante a pandemia, ao mesmo tempo que se reforçou a tendência de migração destes processos para as plataformas digitais. Portugal afirmou-se como referência mundial ao longo da última década.
Crise sanitária impôs suspensão sem precedentes e levou orçamentos participativos para o mundo digital
É inquestionável que o novo coronavírus infetou as democracias, levando os decisores políticos a impor medidas sem precedentes. A crise sanitária gerou uma onda de regressão das liberdades e direitos cívicos em larga escala, embora com geometrias e intensidades variáveis.
Os estados de emergência, de alarme ou de exceção, mais ou menos longos, representaram períodos de elevada intensidade institucional, com os órgãos governativos a adotarem inúmeras e complexas decisões políticas em muito pouco tempo. Paradoxalmente, tudo foi feito com as pessoas fechadas em casa, assumindo o papel de espectadoras de um filme com final incerto. Tudo feito em nome delas, sem que delas algo fosse solicitado, para além de permanecerem nos seus lares à espera de mais um anúncio de medidas a adotar. Foi assim dos regimes autocráticos às democracias perfeitas.
Num contexto como este, de imposição de regras restritivas às liberdades de circulação e outras, os mecanismos de participação cidadã foram altamente penalizados. Perdeu-se intensidade na vida coletiva, nas formas de diálogo e de interação entre as instituições e as populações e destas consigo mesmas.
Os Orçamentos Participativos (OP) não foram exceção. A crise sanitária e a consequente adoção de medidas de confinamento levaram à interrupção de cerca de 55 por cento destes processos, o que permite designar a dinâmica daqui resultante como a “grande suspensão”. Em pouco mais de trinta anos de OP no mundo, a tendência foi sempre de crescimento, com o saldo de novas iniciativas a suplantar largamente as que fracassaram. O ano de 2020 marcou a primeira grande inversão deste movimento, com o número de processos descontinuados a ultrapassar os que funcionaram e os que emergiram em plena pandemia.
Deste contexto resultaram ainda duas tendências. A primeira pode ser denominada de aumento substancial dos OP 100% virtuais, estando estes assentes no uso exclusivo de ferramentas tecnológicas, com principal enfase para as páginas de internet dedicadas aos processos participativos, através das quais os participantes podem acompanhar as últimas notícias do OP, conhecer as regras de funcionamento, apresentar propostas, votar em projetos e solicitar esclarecimentos, entre outras funcionalidades secundárias. A segunda aponta para a emergência de OP assentes num modelo virtual avançado. Este diferencia-se do anterior, o tradicional, pela introdução de ferramentas digitais que viabilizam a interação em tempo real entre participantes e destes com a Administração. São disso exemplo as plataformas de videoconferência (Zoom, Meet, Teams, etc.) e os programas colaborativos (Jamboard, Miro, etc.). Essas evoluíram imenso durante a pandemia, tornando-se usuais no quotidiano de muitas pessoas e organizações, o que levou alguns orçamentos participativos a recorrerem à sua utilização para dinamizar e enriquecer os seus processos, como são disso exemplo os encontros ou assembleias virtuais com as populações.
O “abandono” dos métodos de participação presencial conduziu as atenções e os esforços das Administrações para a procura de soluções que permitissem inovar as abordagens tecnológicas tradicionais. Deste ponto de vista, a pandemia funcionou como um laboratório de renovação dos métodos digitais, o que se afigura positivo pela busca do aperfeiçoamento de iniciativas tendencialmente de baixa interação participativa. Esta propensão tem, no entanto, um lado mais sombrio, que está relacionado com o significativo desinvestimento nos métodos presenciais e na sua melhoria contínua.
O grau de suspensão dos orçamentos participativos varia em função dos regimes políticos
Apesar das tendências expostas, os impactos da pandemia no desenvolvimento dos orçamentos participativos não se fizeram sentir da mesma forma em todas as regiões do globo. As diferenciações encontradas podem estar relacionadas com diversos fatores, entre os quais a intensidade da propagação do vírus, a severidade das medidas de isolamento social e a natureza presencial ou virtual das atividades.
De acordo com os dados recolhidos pelos autores do Atlas, é possível concluir que existe também uma certa diferenciação do estado dos orçamentos participativos em função dos tipos de regimes políticos vigentes nos países abrangidos. Assim, torna-se evidente que os estados autoritários são os que apresentam a menor percentagem de suspensão destes processos, nomeadamente 14%, situando-se muito abaixo dos 55% registados a nível global. É também nesses territórios que se verifica a percentagem mais elevada de iniciativas de OP que funcionaram regularmente, sem interferências causadas pela pandemia, em concreto 57%, o que representa mais do dobro do registado a nível mundial (24%).
No extremo oposto encontram-se as democracias perfeitas, com um nível de suspensão de processos superior a 81% e uns residuais 8% que conseguiram prosseguir a sua atividade de uma forma normal.
O dado mais relevante desta análise resulta precisamente do padrão registado ao nível dos orçamentos participativos que asseguraram o seu funcionamento regular, sem suspensão e sem adequações metodológicas. Constata-se que esses tendem a aumentar à medida que se entra em territórios onde se restringem as liberdades dos cidadãos e das organizações, ou seja, na exata medida em que se caminha de um extremo para outro, ou seja, de uma democracia perfeita para a um regime autoritário.
Parece um contrassenso que uma das expressões mais firmes da democracia participativa tenha evidenciado maior resiliência durante a pandemia nos países onde a democracia não é a ordem vigente. Os coordenadores do Atlas referem que não existem respostas cabais para este facto, pelo que a reflexão, sendo especulativa, apenas pode lançar hipóteses, que naturalmente carecem de elementos de verificação.
Rever o conceito e ir além dos orçamentos participativos promovidos por órgãos de governação do território
Os coordenadores do Atlas lançam um desafio à comunidade internacional de promotores e estudiosos destas iniciativas. O pós-pandemia não pode passar apenas pela recuperação e retoma dos processos entretanto suspensos. O repto lançado aponta para a importância de reconceptualizar os OP, de forma a ampliar o expecto da participação para além da decisão sobre os dinheiros públicos e a execução dos projetos vencedores.
Os autores afirmam que o conceito de OP comumente utilizado é hoje insuficiente e limitador da expansão destas iniciativas, na medida em que os orçamentos participativos não são matéria da exclusiva competência dos governos públicos, nem é desejável que o sejam.
A realidade tem vindo a confrontar a comunidade internacional com a emergência de um leque muito variado de atores institucionais, do estado, do mercado e da comunidade, apostados no desenvolvimento de iniciativas de OP.
Os autores afirmam que a democracia não é propriedade dos governos; a democracia participativa não pode ser um exclusivo dos eleitos. Declarar e alimentar o contrário é contribuir para reduzir o espectro da participação. O que o mundo mais precisa, no momento em que os regimes autocráticos crescem e se tornam maioritários, é de uma proliferação e multiplicação de esferas e instâncias de sociabilização e exercício da democracia, pelo que acantonar os OP no “quintal das autoridades públicas” é um erro crasso.
Os autores dão o exemplo das universidades. Alguns desses estabelecimentos têm um universo de estudantes e trabalhadores muito superior à população de uma boa parte dos municípios. O mesmo se pode afirmar relativamente aos orçamentos dessas entidades. Não faz, por isso, qualquer sentido continuar a afirmar que os OP são processos promovidos por governos locais, quando muito provavelmente os impactos gerados por uma iniciativa conduzida por uma universidade podem ser muito superiores em algumas dimensões da vida quotidiana das comunidades em que se inserem.
Consultados os dados de Portugal no Atlas, verifica-se ainda que os autores apontam como elementos de inovação os orçamentos participativos que têm vindo a ser promovidos por ordens profissionais, como acontece com as dos enfermeiros, psicólogos, farmacêuticos e contabilistas.
Refletir sobre a institucionalização dos orçamentos participativos para além das narrativas dicotómicas
Os autores do Atlas identificaram dezasseis países com legislações nacionais sobre orçamentos participativos e essas são responsáveis pela existência de cerca de 65 por cento do total de processos a nível mundial. Analisados os respetivos articulados, concluiu-se que as leis em apreço se dividem em 4 tipos: obrigatórias, facultativas, de incentivo e híbridas.
Sendo esta uma realidade cada vez mais presente, os autores consideram que a comunidade internacional deve abandonar o debate a favor e contra a institucionalização destes processos, para se concentrar no que designam de “caminho da virtude”, ou seja, encontrar as melhores abordagens a adotar para a definição de leis que enquadram e regulam o desenvolvimento e a avaliação dos orçamentos participativos, assegurando o equilíbrio entre a normatividade e a inovação, impedindo, assim, que a primeira represente a condenação da segunda.
Os autores consideram, assim, que a definição de qualquer regulamentação nacional deve assegurar sete princípios essenciais:
evitar a excessiva rigidez dos normativos legais, como forma de valorizar e incentivar a capacidade de inovação dos que pretendem levar a cabo a iniciativa de forma distintiva;
assegurar a total e inequívoca liberdade de participação e a capacidade deliberativa das populações;
garantir o caráter vinculativo das decisões dos cidadãos, o mesmo é dizer, certificar que os governos executam as prioridades definidas no âmbito do processo participativo;
definir requisitos mínimos substantivos – e não meramente simbólicos – para que a prática possa ser classificada como orçamento participativo;
prever penalizações para as administrações que não cumprem com as disposições legais definidas;
criar mecanismos de transparência na gestão de todo o processo;
prever a existência de instâncias independentes de monitorização e avaliação.
O Atlas adianta ainda que adicionalmente, a criação de uma lei com estes propósitos deve ser acompanhada de duas ferramentas de suporte, nomeadamente:
um programa de capacitação para todos os governos visados na lei – locais, nacionais ou outros – para que os respetivos eleitos e quadros técnicos produzam as competências requeridas por um processo como o orçamento participativo;
um plano de monitorização e avaliação da aplicação da lei, visando medir o seu alcance, a qualidade dos processos, os resultados e os impactos gerados.
Portugal tem-se afirmado como uma referência internacional na adoção de boas práticas de orçamentos participativos
A disseminação dos orçamentos participativos no mundo resulta de uma ampla e complexa rede de movimentos transnacionais, construída ao longo de mais de três décadas e composta por milhares de atores e locais espalhados pelo mundo. São inúmeras as trajetórias percorridas por estas práticas, tendo os autores conseguido constituir o que designaram de ‘mapas de influências’. Estes procuram representar a circulação mundial dos orçamentos participativos em diferentes temporalidades, analisando os países que serviram de inspiração para outros idealizarem as suas primeiras iniciativas, bem como as relações existentes entre eles.
Deste trabalho resulta de forma muito clara que Portugal se afirmou, ao longo da última década, como uma referência internacional incontestável. Isto depois do país ter vivido um período interno de adesão às iniciativas consultivas e destas terem fracassado diante da afirmação de processos mais elaborados e consistentes de deliberação pública.
Entre os países que integram o Atlas, existem menções ao facto do ‘OP português’ se ter constituído como uma referência para experiências desenvolvidas em Cabo Verde, Moçambique, Federação Russa, França, Croácia, República Checa, Colômbia, México, Egito, entre outros. Neste grupo encontram-se países que buscaram nas iniciativas lusas inspiração para os seus primeiros processos de OP ou para uma renovação de experiências em curso. Este segundo grupo refere-se, no essencial, a práticas que recorreram numa primeira fase da sua existência ao modelo brasileiro de Porto Alegre e que mais tarde procuraram em Portugal a fonte para uma revisão das metodologias.
O Atlas é coordenado pela Associação Oficina, de Portugal, e conta com uma rede de 106 autores oriundos de 65 países, em representação de todos os continentes. A publicação é apoiada pela Câmara Municipal de Cascais e encontra-se disponível para download, em português e inglês, no seguinte endereço: www.oficina.org.pt/atlas.html.